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Literatura Fantástica nas ondas do rádio
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
Conto II
Maya olhou para o céu noturno através da porta que dava para a sacada e sentiu que esta noite a lua não iluminaria seus passos. Não gostava de lua nova. Nem gostava dessa época de noites ruidosas, de neve artificial nas calçadas, de casas cheias de luzinhas coloridas. Tudo isso a deixava deprimida. Ergueu com a mão direita o seu jantar, que se debatia desesperadamente, e, sem mesmo olhar para o homem rechonchudo e vermelho cujo pescoço apertava com força, estalou a sua unha e fez uma punção na veia da jugular, colhendo habilmente o jato de sangue numa taça de cristal. Depois, soltou-o, fazendo com que ele desabasse estrepitosamente no chão. Ora, ela era má, extremamente má... E estava de mau humor.
Depois de beber lentamente o sangue da taça, segurou de novo o jantar que tentava escapulir pela porta e, com um suspiro de impaciência, acabou a refeição, sugando o pescoço gordinho e suculento até não restar uma gota de sangue no cadáver. Sangue gorduroso que, embora delicioso, ela tinha jurado evitar! Inferno, ela estava fazendo tudo errado hoje... Pegou a taça caríssima de cristal da Boêmia e atirou-a sobre um Portinari na parede. Que se dane! Pertenciam ao seu jantar e ele não iria mais precisar... Bufando de ódio de si mesma, deslizou pela parede da mansão e encaminhou-se para a rua. Precisava de ar fresco.
A multidão tomava quase todas as ruas normalmente desertas nesse horário. As lojas só fechavam à meia-noite e as pessoas frenéticas, presas de grande agitação, andavam em ziguezague, esbarrando umas nas outras, carregadas de pacotes e crianças barulhentas. Era irritante. Até mesmo a beleza de Maya, que normalmente arrancava suspiros invejosos das mulheres e olhares cobiçosos dos homens, passava despercebida em meio a esse mar de gente. As pessoas olhavam através de Maya, para as malditas vitrines, sempre elas... Um som estridente elevou-se acima do burburinho. Era uma buzina. E outra e outra. Por fim, uma sinfonia insuportável soou na noite, obrigando Maya a abrigar-se dentro de uma magazine, exausta e nervosa. Mas, ao dar-se conta de onde estava, ela sentiu-se um pouco melhor.
Apesar de sua natureza de vampira, Maya não perdera alguns hábitos que cultivava quando era mortal. Uma delas era fazer compras compulsivamente quando estava deprimida ou carente, e, ali parecia um local ideal para gastar muito dinheiro sem chamar atenção... Escolheu um lindo vestido negro, semi-transparente e bem justo, desenhado pelo estilista da moda. Ficaria espetacular com sandálias altíssimas. Sem demora, encaminhou-se à sessão de calçados, queria escolher um par bem caro! Não tardou a ver, exposto na prateleira, um belo par de sandálias douradas. Eram lindas! Tiras finíssimas e delicadas e um salto fenomenal. Usá-las seria um prodígio de equilíbrio... Pegou-as e encaminhou-se para uma cadeira, queria experimentá-las. Mas uma mulher corpulenta de cabelos vermelhos alcançou de modo atabalhoado a cadeira e sentou-se à sua frente. Maya franziu o cenho, arreganhando os caninos de leve. Não, não podia fazer nada. Não em público... Sentiu que o sangue lhe subia à cabeça e o mau humor estava querendo voltar...
- Vendedora! - Gritava a mulher. - Vamos logo, não tenho o dia todo!
Maya suspirou profundamente e resolveu provar o calçado de pé mesmo. Seu equilíbrio era excepcional, não precisava se sentar. Colocou o par no chão e calçou o pé esquerdo. Servia-lhe muito bem! As tiras eram tão finas que se assemelhavam a fios de ouro. Mas qual não foi a sua surpresa quando foi pegar o outro pé e ele estava nas mãos da mulher de cabelos vermelhos?
- Vendedora! - Ela gritava de novo. - Quero esta sandália.
- Mas não temos mais este modelo. - Disse a vendedora. - Posso mostrar outros...
- Não quero saber. - Disse a mulher. - Eu quero este!
- Mas a outra cliente está experimentando, senhora! E nem é seu número, é muito pequeno...
- É exatamente o número que eu quero. - Vociferou ela, fazendo a vendedora calar-se, intimidada.
- Espere um pouco, - disse Maya, furiosa, - eu vou comprar esta sandália.
- Eu estou na sua frente, meu bem. - Disse a mulher, com um risinho sardônico. - Eu já comprei! - Ato contínuo, ela arrancou o outro par das mãos de Maya e encaminhou-se para o caixa.
Tudo coloriu-se de vermelho na mente de Maya. Se não fosse uma morta-viva, teria tido algum tipo de ataque, pois as suas artérias do pescoço quase explodiram nesse momento. Era só saltar sobre a perua e estraçalhar-lhe toda a carne gorda... Maya respirou fundo e controlou o seu instinto. Não podia revelar-se em locais públicos... Ah, mas tinha tanta raiva que podia ter chorado lágrimas de sangue! Sentiu-se impotente, sem nada a fazer a não ser engolir a afronta. Largou ali mesmo o vestido que havia escolhido e encaminhou-se para a saída. Mantenha a dignidade, pequena Maya, dizia de si para si. Depois de duzentos anos não podia admitir que uma mortal qualquer tivesse o gostinho de tirá-la do sério. Afinal de contas era ela que se alimentava de sangue humano. Era ela o monstro malvado! Ou não era?
Depois daquele dia, Maya não foi mais a mesma. O seu amor-próprio fora ferido profundamente, sentia-se um ser inferior, frágil, um nada! Não conseguia mais alimentar-se com a mesma voracidade, restringindo-se a atacar presas doentes e fracas, muitas vezes animais como pombos, que existiam em profusão na cidade. Durante os dias, quando adormecia no seu caixão, era perseguida pelos pesadelos onde a gorda de cabelos vermelhos gritava “meu bem” com o mesmo risinho de escárnio. Cada vez mais, Maya ia caindo em profunda depressão, sem vontade para nada, a não ser perambular pelas ruas como uma sombra do orgulhoso ser noturno que fora um dia.
Uma noite, ao acordar, Maya ouviu vozes à porta.
- Tem certeza que é aqui, Nestor?
Conhecia aquela voz.
- Então, meu bem, vamos logo! Não tenho a noite toda pra ver esta espelunca! E vou logo avisando, não estou gostando nada do que estou vendo, Nestor, você não vai alugar este pulgueiro, ouviu? Ouviu?
Maya sentiu o seu coração bater novamente por alguns instantes. Será possível? Então viu-a pela janela. Era ela, a gorda de cabelos vermelhos e o seu infeliz marido bem ali, na sua porta... O ruído de uma chave girando na fechadura não deixava mais dúvidas. Finalmente, Maya deu-se conta que era Natal. Que Papai Noel existe... E que ela era uma menina muito, muito, má que acabara de ganhar o melhor presente de sua vida!
Fim
Giulia Moon é uma autora de São Paulo, contista, que atualmente se destaca como romancista no cenário literário brasileiro, com seu livro ‘Kaori – Perfume de Vampira’.
Sua vampira Maya aparece em vários contos assinados por Giulia e tem fãs fiéis, os quais acompanham suas histórias com o mesmo interesse e paixão, de quem acompanha uma série de TV. A maioria por querer saber se Maya irá, ou não, sucumbir ao desejo de cravar os dentes no pescoço do enigmático mordomo Stephen (personagem do universo de Maya, assim como Thorius e Makoto).
Para saber mais sobre Giulia Moon entre no twitter da autora: http://twitter.com/giuliamoon
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