Blixi trabalha na posição central da esteira. Pelas janelas da Fábrica é quase impossível entrar um raio de sol, a não ser no verão, quando ele brilha pálido no céu durante longas horas. A maior parte do pessoal não gosta e prefere que se fechem as janelas, deixando a iluminação a cargo dos globos de cristalneve; é como se o inverno durasse o ano inteiro. Ou talvez o outono, a época de maior demanda, quando o Patrono pede um esforço extra a fim de aumentar a produção. Na prática, isso significa trabalhar dobrado. E como a pausa entre os turnos, quando podem sair um pouco, nunca é ao meio-dia, eles ficam vários meses sem ver a luz do sol.
Blixi é um bom operário, mas o Chefe da Oficina o vigia de perto e às vezes o repreende por se distrair. Isso vem acontecendo com mais frequência nos últimos anos, sem que haja uma razão: o ambiente não oferece novidades, muito menos o trabalho, executado com gestos medidos e perfeitos. Juntar duas peças, pregar, passar ao próximo na esteira; juntar mais duas peças, pregar e assim por diante. Não é um trabalho ruim – a ideia nem passaria pela cabeça deles – mas Blixi está ali há tanto tempo, suas mãos tão habituadas a repetir aqueles movimentos que, mesmo sem querer, seu olhar se desprende da esteira, passeando pela oficina como se estivesse em busca de algo. O quê?, pergunta o Chefe, mais ríspido e irritado a cada vez. Mas a resposta de Blixi é baixar a cabeça e voltar ao trabalho.
Ou pelo menos foi assim até hoje.
É o dia que costumam chamar de Véspera, um dia frenético e atarefado na Fábrica, pois antecede aquele em que se escoa a produção de um ano inteiro. Blixi está em seu posto e maneja um pincel, que mergulha na cola a fim de unir duas partes de uma casinha de brinquedo. Como de costume, todos trabalham sem erguer os olhos, a não ser o Chefe da Oficina que vai de lá para cá fiscalizando produtos e operários. Suas botas fazem um ruído constante, com um ritmo tão cadenciado quanto o de um relógio; está ali desde o início do turno, incorporado aos outros sons da Fábrica, e, por isso mesmo, chama a atenção de Blixi ao se deter inesperadamente. Ele tenta resistir, concentra-se na seqüência de movimentos diante da esteira, mas o impulso cresce, avolumando-se dentro dele até se tornar mais forte que a vontade. Então, Blixi olha.
O Chefe da Oficina está de pé, lendo um papel que acaba de descer pelo tubogelo. Isso não teria roubado mais que um instante da atenção de Blixi , não fosse por um detalhe: o Chefe precisou de luz para enxergar o memorando, e em vez de usar um globoneve abriu uma janela. E por acaso – só pode ter sido o acaso – ele o fez durante a única hora de sol deste dia de inverno.
Uma estreita faixa de claridade se insinua na oficina, invade os olhos de Blixi, cegando-o para qualquer coisa que não seja essa luz. A esteira continua a rolar, as partes das casinhas passando à sua frente sem que sequer as veja. O operário que o sucede na linha de montagem tenta cobrir a falha, logo ajudado pelo colega seguinte, mas, com sua própria série de movimentos a executar, não demoram a se ver atrapalhados. Sem saber o que fazer, um deles chama Blixi em voz alta, com isso conseguindo trazê-lo de volta a seu posto; mas o grito atrai a atenção do Chefe da Oficina, cujos olhos lampejam ao ver as peças acumuladas na esteira. Ele se volta para Blixi com a pergunta de sempre, mais furiosa que nunca, na ponta da língua – pergunta que, no entanto, morre em sua boca ao perceber que é inútil. Pois pela primeira vez, embora como sempre tenha voltado ao trabalho, a expressão de Blixi deixa claro que ele tem uma resposta.
O procedimento-padrão nesses casos é um só, e o Chefe não teria chegado onde chegou se não cumprisse as regras. Sem nada dizer, ele vira as folhas em sua prancheta até achar o nome de Blixi e escreve o código correspondente, informação que, no fim do turno, será enviada para o pessoal do escritório. Eles vão se encarregar do caso, talvez em um ou dois dias; não é provável que o façam durante a confusão da Véspera, embora, quem sabe? Entre todas as noites do ano, é justamente nesta que tudo pode acontecer.
E de fato acontece. E muito antes do que o Chefe esperava: no meio do turno seguinte, quando uma ordem expedida pelo tubogelo encaminha Blixi ao setor de empacotamento. É uma sala gigantesca, localizada no último andar da Fábrica. Para surpresa de Blixi, lembra muito a oficina, com as mesmas esteiras rolantes onde trabalham centenas de operários. A diferença é que, em vez de montar brinquedos, aqui a série de movimentos serve para embrulhá-los, alguns dentro de caixas, outros em sacos de pano ou de papel colorido. O operário na última posição de cada esteira enfeita o pacote com um laço e o volume cai por um tubo em algum lugar situado nos andares inferiores. Todas as esteiras, aliás - e são muitas - terminam nesse mesmo tubo, de forma que os pacotes devem estar se acumulando bem rápido lá embaixo.
Blixi está pensando no tamanho da pilha quando o Supervisor se aproxima dele. Ao contrário do Chefe da Oficina, sua expressão não é de impaciência; a voz é monótona, mas suave, e sua cadência leva Blixi a relaxar e a concordar com tudo que é dito. Sim, ele sabe que a Fábrica tem regras e admite que as infringiu várias vezes, nos últimos anos, quando deixou de prestar atenção à esteira. Também está ciente de que a infração de hoje foi mais grave, não só por ter causado uma falha na produção, mas porque – e nesse ponto a voz do Supervisor ganha um tom mais íntimo – com sua atitude, Blixi mostrou estar descontente, e isso contraria a orientação do Patrono quanto aos operários.
Eles não podem trabalhar na Fábrica se não forem felizes.
A imagem do Patrono, até então adormecida em sua moldura na parede, ganha súbita vida à menção do seu nome. Ela cresce diante dos olhos de Blixi; é quase como se estivesse ali em pessoa, as longas barbas brancas e as faces que parecem maçãs. Ele sorri, seus olhos transbordando de confiança e bondade, e Blixi se deixa envolver por elas como por uma nuvem. Agora sim, tudo vai dar certo, é o que ele sente, inspirado pela visão. Agora você está pronto para dar sua última contribuição à Fábrica.
Ele segue as próximas instruções sem hesitar, caminhando até a borda do círculo aberto no chão, onde a cada segundo as esteiras despejam presentes. O Supervisor cola um laço em seu avental enquanto o Patrono continua a sorrir: aí está o pequeno Blixi, foi um bom operário, agora servirá à Fábrica em seu maior propósito. Ele põe as mãos na cintura e estufa o peito, cheio de orgulho – e é exatamente ali que, no momento seguinte, os olhos cândidos e azulados do Patrono o atingem com um raio.
A queda é imediata, e a rigidez que atinge seus membros é tão rápida que ele não chega a se debater. Também seu grito some na garganta após os primeiros metros – some para sempre, ele sabe, como sabe o que vai acontecer a seguir. É um dos efeitos do choque: ele desfaz as ilusões, revela de uma só vez a verdade sobre os que não se adaptam à Fábrica.
Blixi não tem dúvidas sobre o que o espera nas próximas horas. Enrijecido, reduzido a talvez um quarto do tamanho, seu corpo irá cair sobre uma esteira, quilômetros abaixo, em meio aos outros pacotes destinados a carregar o trenó. Sua consciência vai durar ainda algum tempo, suficiente para que perceba a partida do veículo e quem sabe – se a posição entre os brinquedos lhe permitir – sentir o toque do vento pela última vez.
E talvez haja estrelas. Ele pensa no seu brilho, o cintilar como cristais de gelo, e se recorda de como o espantou saber que os mortais lhes fazem pedidos. Então, de repente, lembra que para os humanos a Véspera é a noite em que todos os desejos se realizam; e embora não seja um deles, embora não chegue a crer de fato nas estrelas, antes que tudo se apague Blixi ainda tem tempo de formular o seu primeiro e último desejo.
Ficar no fundo do trenó, entre os brinquedos destinados ao outro lado do mundo.
E lá chegando, ser entregue a uma criança que brinque o ano inteiro sob a luz do sol.
* * * *
A autora Ana Lúcia Merege escreve história de fantasia com foco no leitor mais jovem. Porém também escreve para o público adulto. Entre seus trabalhos temos participações como contista nas coleções 'Imaginários' da Draco, 'Paradigmas' da Tarja e 'Extraneus' e 'Histórias Fantásticas' ambas da Editora Estronho.
Ana Lúcia Merege é bibliotecária e trabalha no patrimônio brasileiro do saber, a Biblioteca Nacional, aqui no Rio de Janeiro, mas reside em Niterói. A autora também é pesquisadora de mitologia e literatura.
Relançou esse ano seu livro 'Os Contos de Fadas', no mês de outubro (2010), e prepara-se para lançar um novo livro, pela Editora Draco, no ano que vem. (Veja como foi o lançamento no Rio clicando AQUI.)
Para saber mais, visite o blog oficial da autora Ana Lúcia Merege:
http://estantemagica.blogspot.com
Twitter oficial da autora Ana Lúcia Merege:
@anamerege
Hoje, Ante-Véspera, ganho este presente via twitter, de conhecer este texto e sua autora e, até, seu blog.
ResponderExcluirHoje, ante-véspera, já terá valido a pena pela descoberta. Parabéns, Ana. E obrigado.
cid cancer
mogi das cruzes - sp
Ana, seu conto é de ler e prender a respiração, muito bom, de fato, um presente!
ResponderExcluirIncrível!!!
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