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domingo, 30 de maio de 2010

Conto XIX


Pádua, 16 de setembro de 1938.

Giuseppe Pasqualetto, este é meu nome. Nasci no ano de 1905 na província de Pádua, Itália. Sou um jovem historiador e estou sempre em busca de elementos históricos que expliquem a minha própria existência. Confesso que meus achados arqueológicos foram muitos; antigas obras, cartas e artefatos ritualísticos. Doei a maioria destes objetos para o estudo em museus e universidades da Itália, além de que são usados para a simples contemplação dos interessados e da chamativa para o turismo local. Mas, entre estes achados, destaco uma carta datada do ano de 1627, escrita por uma religiosa da cidade de Pádua, chamada Maria di Santoriello. Todos os indícios indicam veracidade, mas pelo fator sobrenatural agregado, preferi guardá-la comigo, pois este tipo de achado, geralmente não vai para os museus ou universidades, mas para o estudo da principal igreja sui iuris do Vaticano, e jamais são expostos ao público.

Sempre soube através de relatos, da existência do diabólico livro Necronomicon, e que no ano de 1232, fora banido e destruído pelo Papa Gregório IX. Muitos historiadores acreditam que este livro foi uma invenção do criativo escritor norte-americano H. P. Lovecraft, mas, tenho provas concretas que não foi, pois restou uma cópia do original em latim, e esta se encontra em meu poder. Encontrei este livro dentro da tumba da Srta. Maria di Santoriello, uma jovem recém-casada, provavelmente esposa de um dos homens mais ricos de Pádua do século XVI, devido aos luxuosos ornamentos em estilo gótico da capela onde encontrei sua tumba. O livro estava bem conservado, devido a reforçada capa de couro aparentemente humana. Confesso que li poucas linhas deste livro, que cita nomes de mestres infernais, apresenta pentagramas de invocação, e um mapa detalhado do próprio inferno, outra característica que me fez acreditar ainda mais no poema épico e teológico La Divina Commedia de Dante Alighieri. Mas, dentro desta demoníaca obra, havia uma carta da própria Srta. Santoriello, que reforçou ainda mais a minha convicção na veracidade do Necronomicon, e que certamente aquela era a cópia do original; talvez a única existente.

A carta que reproduzirei abaixo pode ser considerada como uma história episódica da vida da Srta. Santoriello, pois sua principal preocupação, foi em descrever os angustiantes fatos de parte da sua vida, e não os valores históricos da obra Necronomicon e muito menos os regionais.

Segue a reprodução da carta escrita pela Srta. Maria di Santoriello.

Pádua, 07 de novembro de 1627.

“O Tormento em minha vida iniciou-se há dois dias, quando encontrei um maldito livro, intitulado Necronomicon.

Tenho dezessete anos e sou filha de fervorosos religiosos. Desnuda de ornamentos, sem experiência no amor e completamente tímida, sempre tive problemas em meus possíveis relacionamentos. ‘Possíveis’ porque nunca me relacionei com um homem, pois quando estava próxima de um, ele se afastava imediatamente. Além da proibição dos meus pais, os rapazes não sentiam interesse em uma garota como eu... Mas, apesar deste triste relato, saiba que eu tentava me consolar nas preces. A Igreja era minha segunda morada e já estava nos planos dos meus pais, desde os meus treze anos, tornar-me noiva de Jesus; uma freira. Há quatro anos, vinha tentando retardar este acontecimento; não queria viver no celibato e desejava veemente ser como as outras garotas da minha idade: vivenciar novas experiências e experimentar do fruto proibido, mas, o inevitável estava para acontecer, pois meus pais já tinham planejado a minha entrada para o convento com a madre superiora, e minha clausura já era certa, a não ser pelo diabólico plano que tive naquela mesma noite, plano que executei com perfeição no dia seguinte: recordo do aroma daquela manhã. O dia estava nublado e o comércio local funcionava normalmente, como todas as rotineiras manhãs de Pádua. Com a Bíblia embaixo do braço e segurando com firmeza um terço, presente dos meus pais, caminhava lentamente e cabisbaixa pelas ruas, um disfarce para o plano que logo colocaria em prática. Chegando ao convento, adentrei-me na igrejinha e, como todos os dias anteriores, ajoelhei-me, mas não próxima ao altar como de costume, procurei um lugar mais discreto, próximo a seda rubra de uma grande cortina. Acendi algumas velas e orei boa parte daquele dia. Meus joelhos doíam, pois não estava acostumada a ficar tantas horas naquela posição. Na realidade, pretendia executar meu plano mais cedo, mas faltou-me coragem. Até que, refletindo novamente sobre a minha vida enclausurada naquele convento, sem ao menos sentir os prazeres carnais da vida, um intenso calor tomou conta do meu corpo, e o ódio falou por mim. Esbarrei propositalmente em algumas das velas que acendi e, a cortina de seda fez o restante do trabalho... Em poucos minutos, a igreja inteira ardia em chamas. Corri, e como num drama escrito pelo próprio Shakespeare, interpretei a mocinha que fugia desesperadamente em prantos, deixando para trás o terço e a Bíblia para também serem consumidos pelo fogo. Corria e chorava muito, mas ninguém sabia que era de pura alegria, pois o convento inteiro estava ferozmente sendo consumido pelas chamas, mas, por mero acaso do destino, ou talvez por castigo devido ao meu último ato, tropecei e cai de joelhos num objeto que um dos padres deixou cair na correria, pois todas as freiras e padres tentavam salvar livros e objetos valiosos do convento. Meus joelhos sangravam muito, então olhei para o pequeno obstáculo e notei que era um livro, e o seu título Necronomicon. Tentei procurar o padre que o perdera em vão. Peguei o livro e continuei vagarosamente minha caminhada até minha casa.

O plano deu certo, acabei com o único convento da região. Meus pais se esqueceram momentaneamente dos planos para a minha clausura, e agora eu tinha algo muito valioso em mãos: um livro que poderia me fornecer o poder da sedução e muitas riquezas: Necronomicon.
Ao anoitecer, esperei meus pais irem para os seus aposentos. Tranquei a porta do meu quarto e acendi uma única vela. Retirei o espesso tapete do centro e comecei a riscar o chão com a ponta de uma faca banhada em sangue de animal, assim como orientava o livro. Infelizmente, fui obrigada a sacrificar meu único felino. O pentagrama era complexo e passei mais de uma hora riscando o chão, até que o deixei perfeitamente idêntico ao da ilustração. Ajoelhei-me no centro e com o livro em mãos, iniciei a profana oração... Sentia calafrios e arrepios por todo o corpo. O vento soprava furioso em minha janela, deixando-a completamente escancarada. Por um breve momento, tive que parar a oração para fechá-la e continuar o ritual, mas o que irei descrever foge de tudo o que já vi ou ouvi em toda a minha vida. Após fechar a janela e voltar-me para o pentagrama, já não estava só em meu quarto, uma imensa criatura de aproximadamente três metros, agachada e praticamente imóvel, contemplava o pentagrama. O estranho ser estava nu e seu corpo era coberto por pelos semelhantes aos de um bode, as patas e os chifres idem, exceto pelo corpo humanóide. Eu não deveria ter saído do centro do pentagrama, pois segundo o próprio livro, perdi completamente a minha proteção. A besta olhou fixamente para os olhos meus, e foi neste momento que visualizei o abismo negro do inferno. Vi as almas penitentes ardendo em chamas, assim como inimagináveis e terríveis criaturas. A invocação estava feita. Ele estava ali, Meghalabiel, um dos mestres do inferno, pronto para receber minhas ordens que, sem hesitar, ordenei: riquezas e um grande amor, isto bastava... Com a respiração roufenha, ele rangeu os dentes como um equino, cruzou os braços um sobre o outro, lembrando muito as esfinges do antigo Egito, olhou mais uma vez fixamente para os olhos meus e desapareceu numa nevoa deixando um terrível odor de enxofre. Qualquer garota com a minha idade, estaria desesperada com tal cena. Eu, muito pelo contrário, estava feliz. Pela primeira vez em minha amarga e odiosa vida, estava feliz... Cobri o pentagrama com o tapete, coloquei o Necronomicon embaixo do travesseiro e deitei-me. Não me lembro se sonhei naquela noite, simplesmente apaguei...

(...)

Acordei. Mas, não estava em meu quarto, estava num luxuoso quarto. À porta, uma senhora estranha com o rosto coberto por um véu, segurando uma luxuosa bandeja de prata, composta com apetitosas frutas. Provavelmente uma serviçal. Sem fazer perguntas, me alimentei rapidamente, e ainda descalça e de camisola, sai do quarto e caminhei sem destino num imenso corredor repleto de quadros e bustos de estranhos guerreiros de outrora, até que avistei ao longe um homem de cócoras. Estou em um palácio... Sim, ‘estou’ porque escrevo esta carta nesta mesma manhã, e neste momento, estou trancada em um destes imensos quartos. Sim, consegui sair de casa e me livrar dos meus pais e do confinamento que planejaram para mim no convento. Consegui a tão sonhada riqueza. Mas o amor que me esperava no final do corredor, o homem de cócoras, não era meu amor, muito menos um homem, era Meghalabiel, e, mais uma vez, olhou fixamente para os olhos meus, só que desta vez pronunciou palavras, terríveis e inumanas palavras: ‘Você será a minha eterna noiva, a noiva imortal de Meghalabiel. Basta segurar minha mão para finalizarmos o rito...’ Corri, corri como nunca fizera antes. E longe da vista da besta, me tranquei neste quarto e escrevo esta carta, pois sinto que o fim está próximo. Ouço seus estrondosos passos. Ele está abrindo as portas dos quartos, um a um, como um furacão. Os passos estão cada vez mais próximos e logo ele me encontrará, mas antes disto, acabarei com a minha vida, me jogarei da janela deste quarto. É muito triste saber, neste terrível momento, que este é o preço a pagar pelo meu sonho...”

(...)

Sei que é difícil de acreditar nesta história. Mas ainda descontente com os fatos descritos na carta, procurei pelos registros de todos os habitantes de Pádua do século XVI. Encontrei o da Srta. Santoriello, e os mesmos confirmaram o seu suicídio no dia 07 de novembro de 1627. Encontrei também um exemplar do Acta Diurna, jornal da época, comprovando a destruição do principal convento de Pádua, assim como o suicídio da recém-casada Srta. Santoriello. Nada foi mencionado sobre o Necronomicon e muito menos sobre a carta. Embora tenha lido algumas poucas linhas deste maldito livro, acredito que não esteja preparado para lê-lo, assim como nenhum outro ser humano. Decido neste momento que, não irei destruí-lo, mas confiná-lo em um local secreto que somente eu e mais ninguém, saiba do seu paradeiro. Talvez um dia eu esteja preparado e quem sabe, desvende todos os seus segredos sem cair na tentação de possuir riquezas, pois prezo muito pela minh’alma.

FIM



Ademir Pascale é paulista, ativista cultural, editor, escritor e crítico de cinema. Já participou e também organizou várias antologias, com boa recepção entre fãs do gênero fantástico. Entre essas antologias destacamos Draculea, Invasão, Metamorfose, No Mundo dos Cavaleiros e Dragões, Poe 200 Anos e Zumbis. E também está organizando as antologias Draculea - Volume 2 e Sobrenatural, com previsão para serem lançadas ainda esse ano.

O autor é coeditor do e-zine TerrorZine: Minicontos de Terror, junto com a escritora e assessora de imprensa do Portal Cranik, Elenir Alves. Portal (www.cranik.com) do qual Ademir Pascale é editor.

Para saber mais sobre Ademir Pascale, visite o blog do autor, dedicado ao seu livro O Desejo de Lilith, uma romance de horror/policial que foi publicado esse ano (2010) pela editora Draco.

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