Literatura Fantástica nas ondas do rádio




terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Conto IV



Sozinha na imensa casa, agora vazia e despida de todo o seu esplendor, Christine fitava desoladamente as chamas que se moviam diante de si. No exterior, a neve caía e, ali, reduzida à miséria dos seus precocemente envelhecidos trinta e sete anos, sabia que, quando aquele pequeno fogo se apagasse, também a sua vida estaria em vias de se extinguir.

Haviam passado meses desde que regressara à sua casa há muito abandonada e a apatia a que fora reduzida era de tal modo imensa, que nem notara a acção dos anos sobre o que, em tempos, fora uma esplendorosa mansão, mas que não passava já de um edifício decrépito, invadido pelo pó e pela vegetação, consumido pelos mesmos anos que haviam consumido a sua senhora.

Fora aquele o seu lar no auge da sua glória e seria também o seu abrigo na ruína, o seu leito de morte. O pouco que lhe restava fora consumido em alimentos e lenha e, agora, já nada tinha que lhe permitisse continuar a lutar. Estava fraca, entorpecida e doente devido aos anos de reclusão. Estava a morrer.

Não conseguia deixar de se sentir surpresa, mesmo agora, face à crueldade da vida. Era, afinal, assim que terminava a vida da gloriosa Christine Sommers, a cantora da voz celestial: na mais absoluta miséria, temida por muitos, abandonada por todos, reduzida à ruína na flor da vida.

Onde estavam agora as vozes que a haviam buscado como companheira e que, depois, a haviam condenado? Também elas haviam partido, afastadas pela imensidão do seu tormento. Não ouvia já ninguém na sua mente. Apenas os seus próprios pensamentos, tristes e dolorosos como aquela fria noite de Natal, lhe falavam ainda de tudo aquilo que perdera, da sua vida prestes a terminar. E, nesses momentos, vinha-lhe ainda à mente a memória de uma pequena melodia, tão simples, mas, em tempos, tão especial, e o silêncio rasgava sob o murmúrio da sua voz enfraquecida, da sua débil canção, enquanto a sua mente partia, pela última vez, em direcção ao passado.

Hark how the bells,
Sweet silver bells,
All seem to say
Throw cares away…

Tinha então pouco mais de catorze anos, mas a sua voz era já conhecida por todos os habitantes da pequena vila. Única filha do homem mais poderoso da região, tivera sempre à sua disposição os melhores professores e todas as oportunidades para brilhar.

Não era, pois, surpreendente que o seu vasto talento natural tivesse sido elevado até ao expoente da perfeição.
Naquele domingo quente e soalheiro, Christine passeava distraidamente pelo bosque que rodeava a casa, cantando suavemente, enquanto os seus passos pisavam as folhas caídas, como um harmonioso acompanhamento ao som da sua voz. Sentia-se feliz, pois nada lhe faltava e sabia que poucos dias passariam até que o maior sonho da sua vida se tornasse realidade.

O seu pai prometera-lhe que, no final da semana, a levaria ao Conservatório da cidade, de cujo dono era um amigo de longa data. Certamente que conseguiriam encontrar um lugar para ela e, aí, a sua voz poderia, finalmente, alcançar toda a glória que merecia.

Foi nesse instante, contudo, que uma outra voz interrompeu os seus pensamentos, uma voz infantil e lacrimosa que, suavemente, lhe pedia:

- Vem brincar!

Christine olhou em volta, procurando a origem da voz, mas não encontrou ninguém.

Estava tão sozinha no bosque como sempre estivera.

“Deve ser impressão minha.”, pensou, mas, como se em resposta ao seu pensamento, a voz repetiu, ecoando nitidamente na sua mente:

- Vem brincar, Christine!

Mais uma vez, a jovem olhou em volta, apenas para, mais uma vez, se encontrar
sozinha.

- Onde estás? – perguntou.

- Aqui! – respondeu a voz – Dentro de ti…

Christine soltou um grito. Não podia ser! Não era possível que estivesse realmente a ouvir vozes! Dominada por uma confusa incredulidade, correu para casa, para encontrar a mãe à sua espera, observando-a com uma expressão preocupada.

Só então compreendeu qual deveria ser o seu aspecto, depois de ter sido conduzida a casa pelo seu próprio medo e, ainda demasiado assustada para pensar na interpretação que poderia ser dada às suas palavras, balbuciou:

- Eu ouvi… No bosque. Ouvi uma voz, mas… Mas não estava lá ninguém.

Um laivo de preocupação transpareceu no olhar da senhora Madeleine Sommers, mas foi imediatamente substituído por uma expressão de condescendente ternura, enquanto dizia:

- Então, então… Tenho a certeza de que foi apenas impressão tua. Estavas tão compenetrada nos teus pensamentos que te deixaste levar pela imaginação.

Quando abraçou a filha, contudo, havia lágrimas no seu rosto e a tristeza que a invadira nunca mais abandonaria o olhar de Madeleine, como o fantasma de um acontecimento ainda por vir.

Eles não sabiam que ela estava ali, escondida atrás da porta, a escutar toda a conversa.

Julgavam, claro, que Christine fora para a cama assim que lho haviam ordenado, como filha obediente que sempre fora, mas, naquela noite, Christine sabia que seria ela o assunto da conversa dos seus pais e, por isso, precisava de ouvir.

- James, - dizia a mãe – tens que entender a minha preocupação. A nossa filha diz que ouviu uma voz no bosque, e… Depois da loucura que possuiu a minha mãe, tenho medo que…

- A Christine está óptima, tenho a certeza. – interrompeu o pai – Sabes que ela está a atravessar uma idade difícil. Provavelmente, leu em algum livro sobre a cidade a história do incêndio que consumiu esta zona há cem anos e isso fez com que a imaginação dela começasse a trabalhar.

- Talvez. – concordou Madeleine – Mas, mesmo assim…

- Vamos prestar atenção. – concluiu James – Se algo do género voltar a acontecer, tomaremos atitudes mais sérias.

Chegara a acreditar que aquele fora um acidente isolado, uma armadilha da sua mente, pois, nos quatro anos que haviam correspondido à sua fulgurante ascensão como cantora, nenhuma outra voz ecoara nos seus pensamentos nem fora atormentada por qualquer espécie de fenômeno sobrenatural.

Aquele dia, contudo, o dia do seu décimo oitavo aniversário, estava, de todas as formas, destinado a ser um momento inesquecível. Era o dia do grande concerto de Natal na cidade e Christine seria a voz principal naquele momento de música e de magia.

Toda a sua vida esperara por um momento como aquele, e, agora, chegara, finalmente, a hora em que a sua voz tocaria as almas do mundo. Aquele era o seu dia e nem mesmo o nervosismo que sentia poderia afastá-la da glória que antecipava, que merecia, que era sua por direito.

Subiu ao palco, bela e esplendorosa no seu vestido de veludo branco, sobre o qual o seu cabelo escuro parecia brilhar, enquanto o coro cantava aquela canção que tão especial era para si. Com um sorriso nos lábios, juntou a sua voz às deles, cantando, inebriada pela felicidade:

Hark how the bells,
Sweet silver bells…

Era mágico o poder daquele momento, quase como se a sua voz se pudesse elevar aos céus, para que mesmo os anjos a pudessem escutar. E, à medida que as canções se sucediam, puras e belas na sua mensagem natalícia, o espírito de Christine parecia aproximar-se, passo a passo, do êxtase.

E eis que chegava o culminar daquele momento, o clímax da sua glória. Quase inconscientemente, a sua voz ergueu-se no seu máximo esplendor, enquanto, reflectindo a mesma emoção que se movia dentro de si, dava voz às palavras de “Oh, Holy Night”.

Foi nesse mesmo momento, contudo, que a catástrofe aconteceu, quando o olhar de Christine se tornou cego e, dentro da sua mente, os gritos de horror do que deveria ser uma multidão pareceram ganhar vida. E foi perante este choque interior que o seu corpo cedeu e o canto deu lugar aos gritos, enquanto, atormentada por um pavor incontrolável, Christine se lançava, numa fúria violenta, em busca de uma saída que a afastasse do horror.

A sala de espectáculos, contudo, estava demasiado cheia para que Christine pudesse limitar-se a fugir e as mãos do público, perturbado e preocupado com tão violento acesso de loucura, imobilizaram a cantora, que, sem deixar de se debater, foi conduzida a uma sala nas traseiras do edifício, onde estaria segura até que uma solução mais permanente pudesse ser encontrada.

Entretanto, por entre a multidão, James Sommers tentava transmitir algum conforto à sua esposa, perante aquilo que se tornara agora um facto incontestável. Christine enlouquecera, e era a sua obrigação protegê-la de si própria.

Anos de tormento e de desespero haviam sido quanto restara da sua vida, a nada
reduzida ao longo de todo o tempo que passara internada naquele asilo de loucos

No início, Christine insistira que as vozes existiam e que, por vezes, ainda as escutava, mas cada vez que pronunciava tais palavras, a resposta dos seus carcereiros era a humilhação e a violência, com o objectivo de a fazer ver a verdade, ou, pelo menos, de silenciar os seus delírios.

Tentara inclusive explicar aos pais aquilo que ouvia, na esperança de que eles
acreditassem nela e a libertassem, mas, movidos pela preocupação, o que eles fizeram foi repetir ao director do asilo aquilo que ela lhes dissera e, a partir desse dia, as visitas haviam cessado abruptamente.

Procurara, então, nos seus companheiros de infortúnio, a compreensão que o mundo lhe negara, mas aqueles que não estavam demasiado consumidos pela loucura para a entender julgavam a sua capacidade de comunicar com os mensageiros do outro mundo digna de temor e, por isso, afastavam-se dela o mais possível.

Até mesmo as vozes tinham acabado por desaparecer, afastadas pela violência dos testes e tratamentos a que Christine fora submetida. Naquele momento, já não havia ninguém que a visse como ela fora. Estava sozinha, perdida e condenada… E os anos passariam, uns após os outros, mas nunca, nem mesmo quando, após a morte dos seus pais, o asilo a declarara curada para não ter que suportar por mais tempo o seu sustento, viria a alcançar a libertação.

E agora estava ali, anos e anos passados desde o início do seu tormento, e, face à iminência da morte, não sentia senão uma infinita tristeza, pelas vozes que, dentro de si, se haviam silenciado e das quais não conhecera sequer a origem.

Foi, contudo, nesse mesmo instante, enquanto recordava a forma como tudo começara, que a mesma voz de criança ecoou na sua mente, cantando as mesmas palavras que, na sua voz entorpecida, ela murmurava.

Hark how the bells,
Sweet silver bells,
All seem to say
Throw cares away…

- Olá, Christine. – disse a voz de criança, quando a canção terminou.

- Quem és tu? – perguntou a mulher, mergulhada numa serenidade que jamais conhecera, a certeza de que, apesar da dor e do medo que haviam consumido toda a sua vida, as vozes eram reais.

- Sou uma voz no teu pensamento, - respondeu a voz – como todas as que ouviste ao longo dos anos. Um espírito do passado, que a tua alma sensível quis ouvir e acolher.

- Então, porque partiste?

- Para te poupar ao sofrimento. Naquele tempo, mais que a memória dos mortos do passado, eu era apenas o teu futuro. Hoje, sou a tua liberdade.

Christine sorriu em reconhecimento.

- A morte… - murmurou.

- Sim. – confirmou a voz – A morte.

Depois, uma brusca rajada de vento abriu, com violência, as portas da antiga casa, para se deter subitamente, deixando para trás apenas um corpo inerte, de olhos fechados, finalmente vazio de vida, mas eternamente ligado às teias da memória.

Fim


Carla Ribeiro é estudante de Medicina Veterinária, natural de São Martinho de Mouros, Portugal. Premiada em vários concursos literários, tem textos publicados em diversas antologias e é colaboradora de várias publicações na internet. A autora coordena a revista literária online Alterwords e já publicou os livros “Estrela sem Norte”, “Alma de Fogo”, “Canto de Eternidade”, “Herdeiros de Arasen, vol. I”, “Herdeiros de Arasen, vol. II” , “O Deus Maldito”, “Alma Abandonada”, “Dualidades” (este em co-autoria com Susana Catalão) e “E Morreram Felizes para Sempre”. Tendo também e-books: “Derivações de Além-Vida”, “Coração Selvagem”, “Fragmentos de Sombra” e “Os Passos do Destino” (este em co-autoria com Carina Portugal).

Para saber mais sobre Carla Ribeiro, entre no twitter da autora: http://twitter.com/CarlaSRibeiro

Ou visite http://www.freewebs.com/carlaribeiro/

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