Literatura Fantástica nas ondas do rádio




sábado, 12 de março de 2011

Mês de São Valentim V


Nunca Mais

por Alícia Azevedo


Ela fora trancada no sótão mais uma vez. Não era má, mas agora estava disposta a ser. Sabia exatamente o que vinha depois. Olhava seu reflexo no espelho oval empoeirado e repetia para si mesma, com uma estranha força no olhar.

- Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais.

Suas palavras ressonavam pelo cômodo incomodando o silêncio pouco salutar. A imagem no espelho se petrificava, mas ela não parava de repetir aquelas palavras cheias de amargor, de dor e de cansaço. O espelho tinha absorvido aquela dor por muitos anos, mas não absorveria mais. Tudo terminaria naquele dia cinzento. Apesar de seus lábios repetirem incansavelmente sua súplica derradeira, seu reflexo não se mexia mais.

Ouviu os passos que avançavam trôpegos pela escada do sótão. Logo a portinhola se levantaria. Cerrou os punhos e socou o velho espelho oval de seus ancestrais. Os cacos se espalharam pelo chão. Com a mão ensangüentada pegou um deles e se prostrou ao lado da portinhola. O ranger das dobradiças. O som sufocado do caco penetrando no pescoço do homem. O corpo rolando escada abaixo. Estava feito. Aquele homem nunca mais a molestaria de novo.

Ao anoitecer a mãe de Joana chegou em casa. A filha estava sentada na sala. Sempre lhe parecera obscura e infeliz, mas algo estava errado. Não precisou andar muito para ver o corpo do marido alquebrado em uma enorme poça de sangue. Ficou inerte. Sabia que fora Joana, mas não podia condenar sua própria filha. Pensou rápido. Foi ao quarto da filha, arrumou-lhe uma pequena mala. Correu a sala, puxou Joana, saiu da casa e fechou a porta atrás de si.

Como um autômato, a garota aceitava o seu destino e nada dizia em sua defesa. Sua mãe a levou direto ao padre da Companhia de Jesus. Os sussurros ecoavam pela igreja até os ouvidos de Joana, mas ela não interferiria.

- Quando parte a próxima missão, padre?

- Temos um navio zarpando ao amanhecer.

- Leve-a com vocês, eu imploro. Ela nasceu para fazer a obra do Senhor. É bem educada e saberá ensinar nossa língua aos nativos.

- Não quer saber para onde o navio está indo?

- Não importa, ela está nas mãos de Deus agora. A justiça Divina será mais benevolente com ela que a justiça dos homens.

Numa manhã de 1820 um navio jesuíta partiu de Lisboa para o Brasil levando vários jovens seminaristas e uma jovem que sempre tinha o olhar perdido no Oceano.

Em 1826 um jovem aventureiro descobriu muito ouro no Rio Casca na Capitania de Minas Gerais e Joana estava numa região próxima onde o frisson do ouro já havia se esvaído há algum tempo. Ajudava os padres na construção da primeira igreja da Vila dos Arrepiados e ensinava português às crianças. Vivia feliz ali pela primeira vez em sua vida.

Em 1832 a igreja Matriz da pequena Vila estava completa e o Padre Joaquim a assumiu. Era linda. Fora construída entre os altos e baixos do povoado bem a frente do antigo cemitério e sua torre era tão alta que podia ser vista dos vários montes a sua volta. Quando seu sino tocou pela primeira vez, ela sentiu seu coração acelerar. O badalar daquele sino mudou sua vida para sempre.

Da porta da sua pequena escola ela contemplava a bela igreja, mas se distraiu com o homem que desmaiou aos seus pés. Estava sujo, malcheiroso e carregava uma bolsa muito pesada. Tinha algumas feridas, mas nenhuma fatal. Parecia mais cansado e perdido. Puxou-o para dentro e tratou de suas feridas, o limpou e o trocou, mas fora breves momentos de lucidez, onde ele lhe pedia água, nada mais fez, além de dormir por dois dias.

No terceiro dia, ao acordar, viu Joana adormecida num canto do quarto. O dia estava clareando, e ele sorriu ao ver os primeiros raios de sol baterem no rosto cansado da jovem. Aproximou-se dela devagar para olhar mais de perto. Apesar do cansaço e da palidez era linda. Queria lhe acariciar o rosto, mas tinha medo de despertá-la, assim permaneceu olhando até que ouviu novamente o sino. O sino que ecoara pelas montanhas e que o guiara até ela. Sem aquele sino provavelmente teria sido escalpelado pelos índios Puris e seu ouro não existiria mais.

As badaladas despertaram Joana de seu sono, quando viu o homem ajoelhado ao seu lado deu um pulo da cadeira e afastou-se rapidamente.

- Calma. Jamais lhe faria mal algum. Você salvou a minha vida. Tudo que eu tenho lhe pertence.

- Obrigada pela oferta, mas não o fiz esperando algo em troca.

- Chamo-me Francisco Ferreira.

- Sou Joana.

- Que lugar é esse?

- Essa é a Vila dos Arrepiados.

- Vim do Rio Casca. Fui atacado e perdi o meu caminho para Vila Rica.

- Está bom agora. Pode seguir seu caminho.

- Não sei mais se quero ir.

- Por quê?

- Acredita em destino, Joana?

- Acredito.

- O destino me trouxe até aqui, e devo ficar aqui.

Ela sorriu. Não sabia por que, mas sorriu. Francisco era diferente de todo o homem que tinha conhecido até então. Não queria se apaixonar, mas quando seu coração disparou na primeira badalada do sino sabia que algo ia mudar.

Usou o ouro que trouxe do Rio Casca para comprar um terreno e construiu uma casa simples e aconchegante. Comprou uns cavalos e um boi. Algumas vacas, galinhas, patos. Plantou, colheu. Ajudou a reformar a escola de Joana. Pediu-a em namoro, noivaram, e, alguns anos depois, quando tudo em suas vidas estava florescendo casaram-se na bela igreja Matriz.

Aos 26 anos Joana teve um filho que chamou de Joaquim em homenagem ao padre que a acolhera. Nunca pode imaginar a sorte que teria ao deixar Lisboa naquela manhã fugidia do passado. Ali ela finalmente tinha encontrado o amor e a felicidade que tanto sonhara. Tudo que ela mais queria era ver seu filho crescer e se tornar homem, então nada mais lhe faltaria, estaria completa. Contudo, não se pode fugir do passado.

Seis anos depois, ela foi a uma das vilas vizinhas trocar suprimentos. Atrelou a carroça ao cavalo como sempre e saiu pela manhã esperando voltar à tarde. No meio do caminho uma emboscada de Puris atacou a carroça. Lutou para se desvencilhar deles e conseguiu soltar o cavalo. Deixou os mantimentos de lado e retornou a todo galope de volta a casa, mas aquele era o dia de pagar a sua dívida. Ao ver a mulher se distanciar, um dos índios sacou uma de suas flechas envenenadas e atirou. A flecha lhe raspou o braço fazendo o veneno entrar em sua corrente sanguínea. Ela sentiu o corte, mas continuou. Chegou na porta de casa carregada pelo cavalo e tombou na entrada.

O estanque do corpo batendo no chão chamou a atenção de Francisco. Ao ver o corpo de sua amada caído ele correu ensandecido até ela. Virou-a com cuidado. Ainda respirava. Estava consciente.

- Meu amor, desculpe.

- Não fale. Vai ficar tudo bem.

- O veneno Puri corre nas minhas veias. Cuide de Joaquim, eu o amo. Eu te amo.

As lágrimas desciam dos olhos de Francisco, estava perdendo a única mulher que amou e nada podia ser feito. Apesar da aparência cadavérica ele ainda a via como da primeira vez. Os anos pareciam ter se esquecido dela. Morreria com a mesma imagem que o velho espelho de seus ancestrais petrificou anos antes.

Seu cortejo foi acompanhado por toda a população. Seu corpo foi sepultado de maneira simples como era feito antigamente. Joana foi a primeira de sua família a morrer, e seus restos mortais permaneceram lá sozinhos por doze anos até que seu marido morreu.
Quando abriram o jazigo para enterrá-lo, todo o cemitério se calou. O corpo de Joana estava intacto. Parecia ter sido enterrada no dia anterior. Joaquim não podia acreditar em seus olhos. Quando perdeu a mãe era muito pequeno e mal se lembrava dela, mas vê-la ali agora era diferente. Era como vê-la mais uma vez e lembrar-se de como ela fora.

Trazia uma rosa branca na mão para o pai, mas o choque de ver a mãe o fez se distrair e furar o dedo. Uma gota de sangue escorreu. Pegou a rosa e abriu as mãos de sua mãe, colocando-a nelas. Segurou as mãos nas suas e com uma prece pediu que a mãe descasasse em paz. Sentiu as mãos de sua mãe se crispar sob a rosa, que se tingiu de vermelho como o sangue por ele derramado. Sabia que sua prece tinha sido atendida, ela descansaria agora. Ele já era um homem. Ela estava completa.


Alícia Azevedo é uma contista nascida no Rio de Janeiro. Formada em Filosofia, atualmente mora com o marido e os filhos no interior do estado, em Petrópolis. Tem contos publicados nas antologias ‘Dimensões.BR’, ‘Poe 200 Anos’, ‘No Mundo dos Cavaleiros e Dragões’, ‘Moedas para o Barqueiro’ e ‘Tratado Secreto de Magia’. E também em ‘FC do B - Panorama 2008/2009’.

A autora é uma das participantes da antologia Sociedade das Sombras – Contos Sobrenaturais, parceria da Digital Rio e a Editora Estronho. Já pode conferir o nome de alguns dos autores colaboradores do programa, que estarão no livro na página da antologia na Editora Estronho.

Para saber mais sobre a autora, visite seu blog e siga seu perfil no Twitter:

Alluim
http://alluim.blogspot.com

Twitter da autora @alicia_azevedo.

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